Apesar de ser um direito previsto, o aborto é um problema de saúde pública no Brasil, uma vez que figura dentre as cinco principais causas de morte materna no país. Após anos de previsão, pelo Código Penal, nos casos de estupro e de risco de vida para a gestante – e, posteriormente, pelo STF, nos casos de anencefalia – o aborto legal ainda é um direito inoperante devido à escassez de hospitais de referência para a realização do procedimento. Tal fato se deve tanto pela falta de apoio social quanto estatal, gerando sofrimento para as mulheres e meninas – a maioria em busca do aborto legal por estupro –, que são obrigadas a peregrinar em diversos estabelecimentos de saúde, inclusive fora do estado em que residem, para fazer valer o direito ao procedimento. Tal caminho é cheio de julgamentos, de estigmatização e de desinformação, inclusive por parte daqueles que deveriam acolher essas vítimas de violência sexual nas delegacias, nos hospitais e nos consultórios em geral.
Desse modo, esta obra se propõe a denunciar a cultura do estupro na qual estamos imbricados enquanto sociedade, quando direitos sexuais e reprodutivos são politicamente sonegados, o que foi constatado em campo e problematizado por meio da matriz teórica. Este livro é, pois, um convite ao mergulho nas histórias de mulheres e meninas que realizaram abortos legais entre os anos de 2016 a 2020 no Hospital Materno Infantil Presidente Vargas de Porto Alegre – RS, coletadas por meio do levantamento de prontuários, bem como de entrevistas realizadas com a equipe multidisciplinar que está na linha de frente do serviço de aborto legal do hospital. Mais do que isso, é um convite também a uma reflexão séria acerca da cultura do estupro que nos atravessa e o que ela tem a ver, enfim, com o mau funcionamento dos serviços de referência em aborto legal no país.