ALÉM DE FEITIÇOS E PAIXÕES

Talvez, simbolicamente, possa ter existido um dia especial em que Deus sentou-se pensativo e reuniu todos os anjos preocupados com os homens. Rapidamente se convenceu de que a sua obra não estava finalizada: faltava inventar um autor que beirasse à perfeição, além de todas as coisas maravilhosas que Ele, O Divino, já havia criado. Deteve sua inspiração por vários dias e, sem hesitação, disse ao coração dos arcanjos: “Vou incumbir o maior dos autores, entre todos, e que invente a modernidade, destampe a liberdade, e escreva diversas obras que falem sobre o ser humano”. A tarefa, além disso, é que nos contasse sobre os extremos, do amor à vingança. Decididamente, não era encomenda fácil. Tantos haviam feito isso, desde o mundo antigo, e ainda depois de Cristo, em vários lugares. Não faltava talento nas literaturas pelo mundo, em Roma, na Grécia, no Egito. Mentes brilhantes já alargavam a consciência humana, criando obras para a posteridade. Mas tudo estava incompleto, faltavam peças de teatro nunca vistas. Deus então escolheu Londres, século XVI, palco elisabetano e sentenciou: “Pronto, será aqui nesse teatro, e será você Shakespeare, o ““Bardo””. Chamou-o num canto — numa conversa de pé de ouvido — e determinou ainda: “Invente tudo novamente, inclusive o Ocidente, escreva 154 sonetos incomuns, crie peças trágicas, comédias, use até mensagens líricas, do popular ao clássico, mostre a contradição e a expansão de todos os sentimentos, em palco aberto e luminoso, entre Rei Lear, Otelo, Hamlet, Macbeth, Catarina, e o pensamento medieval deixe para trás. Mostre aos homens que é permitido expressar desejos, e serem livres”. Shakespeare aceitou a incumbência, e a partir daí inventou-se o homem moderno, e a trama se cumpriu. Deus se assustou com a obra e comentou com o Sol, com a Lua e com o tempo, que assistiram a tudo: “Mas precisava ser tão único e original?” Com a benção divina, as aventuras correram para o palco e as paixões foram libertadas. Mas a história não é só essa