Carino, seu pai, logo com dez anos de idade morreu da metade esquerda do corpo, sobrando-lhe apenas a outra metade ainda viva e operante. Houve uma comoção confusa no funeral da metade falecida, pois era preciso que Carino, habitando ainda a metade viva e inseparada, se mantivesse deitado inerte na mesa do féretro para que os parentes pudessem se despedir da parte desencarnada, o que exigia dele uma paciência de que infelizmente não dispunha. Vez ou outra, por conta desses desconfortos estruturais dos músculos, Carino mexia bruscamente o corpo sobrevivente, mexendo também com isso a parte paramentada de defunto. Caíam ao chão as coroas de flores que adornavam o pacote funéreo. O velório foi por isso um acontecimento pouco célere. Foi o próprio Carino que, já em fins de transcender em agonia, decretou às 17h45min o encerramento da cerimônia, agradeceu com sincera humildade os parentes e se levantou do meio caixão, já sentindo fadiga imediata na perna direita, agora sobrecarregada de novas funções ortopédicas: carregar metade de um defunto para sempre.